1899
A LEI QUE SEGREGA

OS ABUSOS DA LEI PELO OLHAR DE FÊNIX VALENTIM (12 ANOS)
O Decreto nº 3.475, de 4 de novembro de 1899, reorganizava competências da Câmara Criminal e estabelecia regras para concessão de fiança no processo penal. Embora de natureza processual, o decreto incorporava mecanismos que aprofundavam a criminalização seletiva da população negra e pobre.
O art. 6º permitia que apenas pessoas com domicílio fixo e que não fossem consideradas “vagabundas” respondessem soltas – critério aparentemente técnico, mas com forte viés discriminatório. Na prática, “vadiagem” servia para separar cidadãos “dignos” da proteção legal daqueles sujeitos à prisão sumária, geralmente negros, analfabetos, libertos ou migrantes internos em situação de vulnerabilidade.
Sem mencionar raça, o decreto produzia efeitos racializados, ao estruturar o sistema de justiça para privilegiar os economicamente integrados, majoritariamente brancos. Funcionava como um instrumento jurídico de manutenção da ordem social e racial do Brasil pós-abolição, legitimando o encarceramento de pessoas negras sob o manto da legalidade.
Essa distinção jurídica institucionaliza um duplo sistema penal: um, mais brando e processual, para indivíduos reconhecidos socialmente como “trabalhadores”; outro, mais rígido e punitivo, para aqueles marginalizados pelas estruturas econômicas e raciais da sociedade. A fiança, prevista apenas para quem pudesse oferecer garantias materiais como títulos públicos, metais preciosos ou propriedades, funcionava como um filtro de classe e raça, tornando o direito à liberdade processual um privilégio restrito à elite branca e proprietária.
Este decreto se insere, portanto, na tradição de normas jurídicas que, mesmo não mencionando raça explicitamente, produziam efeitos racializados e reforçavam a hierarquia social do Brasil pós-abolição, contribuindo para a continuidade do encarceramento seletivo, da exclusão legal e do racismo estrutural por meio do direito.
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