1890
PROBLEMA DE SAÚDE PÚBLICA OU RACISMO RELIGIOSO?
A CRIMINALIZAÇÃO DO CURANDEIRISMO NO BRASIL REPUBLICANO

CULTOS AFRO-BRASILEIROS, BAHIA, 1940 - ARTHUR RAMOS
O Art. 158 do Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890, define o curandeirismo como crime, refletindo o período de transição do Império para a República no Brasil. Nesse tempo, a elite intelectual, influenciada pelo positivismo, buscava promover um projeto de progresso e "civilização" baseado no conhecimento científico e na religião cristã.
As práticas de curandeiros, como benzedeiras, rezadeiras, pais e mães de santo, e pajés, eram vistas como atrasadas e subversivas. O artigo criminalizava quem prescrevesse ou ministrasse substâncias naturais para cura, sob o argumento de proteger a saúde pública.
No entanto, práticas semelhantes realizadas por padres católicos não eram consideradas crime, pois eram vistas como curas legítimas, associadas à fé cristã. Isso evidencia um projeto eugenista de "higiene social" que, sob o pretexto de combater o crime, visava eliminar práticas religiosas afro-brasileiras e de outras minorias.
O crime de curandeirismo estava, na verdade, mais relacionado ao tipo de crença envolvida do que a qualquer preocupação real com a saúde pública. O objetivo era criminalizar práticas religiosas não cristãs, especialmente as afro-brasileiras.
Resistências Radicais
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PERSEGUIÇÃO AOS CURANDEIROS NO BRASIL DO SÉC. XIX

O CIRURGIÃO NEGRO COLOCANDO VENTOSAS. JEAN BAPTISTE DEBRET. AQUARELA, 1826
A institucionalização do Decreto nº 847 não conseguiu erradicar o curandeirismo. Apesar das tentativas de controle, essa prática popular permaneceu uma realidade nas comunidades, sendo uma alternativa para muitos. A continuidade dessa prática é frequentemente evidenciada por matérias e notas que relatam as atividades dos curandeiros, que na maioria das vezes se tratava de pessoa negra, conforme segue:
"O subdelegado da freguesia do Espírito Santo iniciou ontem inquérito contra uma senhora residente na rua de S. Leopoldo, nº 93, por exercer a profissão de curandeira" (Gazeta de Notícias, 1892, p. 2).
"Ao Dr. juiz da 10ª pretoria, o subdelegado da freguesia do Espírito Santo remeteu o inquérito que realizou contra Mariana Isabel da Costa Carneiro, moradora na rua S. Leopoldo nº 93. Mariana era uma curandeira conhecida e foi acusada de exercer a medicina ilegalmente. O crime foi comprovado com os depoimentos de sete testemunhas, que afirmaram que Mariana atuava como curandeira e cobrava 2$ de cada pessoa que a consultava.
A autoridade policial recomendou a pronúncia de Mariana nos termos do art. 158 do Código Penal" (Gazeta de Notícias, 1891, p. 1).
"CURANDEIRA
Ainda não se acabou com a praga daqueles que especulam com as enfermidades alheias.
O Dr. Alfredo Barcellos, delegado de higiene, tratava do filho de José da Purificação, morador em um quarto da estalagem da rua S. Clemente, nº 11.
Vendo que o seu enfermo piorara e sabendo que ele havia ingerido medicamentos fornecidos por uma mulher que se dizia curandeira, comunicou o fato ao subdelegado da freguesia da Lagoa.
Quando o estado do enfermo piorou, e soube-se que ele havia ingerido medicamentos fornecidos por uma mulher que se dizia curandeira, o fato foi comunicado ao subdelegado da freguesia da Lagoa. Esta autoridade interrogou José da Purificação e descobriu que a curandeira era Francisca Fernandes, residente na estalagem da rua da Assunção. Na manhã seguinte, o subdelegado foi até o local e encontrou Francisca examinando o filho da preta Francisca Maria da Conceição, a quem já havia fornecido um vidro de beberagem.
O subdelegado da Lagoa apreendeu o vidro e prendeu Francisca Fernandes, levando-a ao Dr. chefe de polícia para que as providências necessárias fossem tomadas.
Os dois vidros com remédios fornecidos ao filho de Purificação foram levados à inspetoria de higiene para exame de seu conteúdo" (O Paiz, 1891, p. 1).
Eduardo David Rey, mais conhecido como Marius, era um célebre curandeiro que atendia seus clientes no bairro do Fonseca, em Niterói. Marius tornou-se famoso por diversas curas que realizava. Após consultar os espíritos, ele receitava ervas e raízes para seus pacientes. Em algumas situações, Marius recebia espíritos e prescrevia remédios por eles recomendados, muitas vezes adivinhando o motivo da ida do paciente, descrevendo seus problemas e oferecendo conselhos.
Ele se tornou uma figura simpática e generosa, conhecida por muitos, inclusive por autoridades importantes a quem ele prestava favores. Esses fatores contribuíram para que Marius fosse um curandeiro tão célebre, sendo descrito como espírita, ervateiro, milagreiro e até mesmo feiticeiro, embora fosse temente a Deus. Marius, assim como muitos outros praticantes de curas não oficiais, atraiu uma grande clientela. No entanto, esses praticantes, que usavam diversas formas de medicina consideradas ilegais, acabaram se tornando alvos de uma verdadeira "cruzada anticharlatanismo", uma perseguição generalizada a todos que exerciam alguma arte de cura (SAMPAIO, 2001, p. 23).
[TEXTO REESCRITO E ADAPTADO PELO EDITOR REVISOR]
FONTES:
CURANDEIRA. O Paiz, Rio de Janeiro, n. 3.383, p. 1, 1 ago. 1891.
Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, n. 80, p. 2, 20 mar. 1892.
Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, n. 355, p. 1, 21 dez. 1891.
SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Nas Trincheiras da Cura. Campinas: Editora Unicamp, 2001, p. 23.
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RODRIGUES, Karine. De médicos e parteiras a sangradores e curandeiros: quando as artes de curar não eram monopólio da medicina. Casa de Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro. 28 out 2020.
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