1890
CÓDIGO PENAL
A CRIMINALIZAÇÃO E O CONTROLE DA POPULAÇÃO NEGRA NO BRASIL

EXEMPLAR DO CÓDIGO PENAL 1890
A tipificação do crime de vadiagem e a criminalização da capoeira no Brasil, especialmente após a abolição da escravidão, serviu como um meio de controlar a população negra e pobre. Com poucas oportunidades de emprego formal e sem acesso à terra, muitos dos recém-libertos que migraram para os centros urbanos encontravam dificuldades em se inserir no mercado de trabalho.
Aqueles que não conseguiam emprego permaneciam nas cidades sem ocupação ou aceitavam subempregos mal remunerados. Embora o Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890 não mencionasse explicitamente a questão racial, é possível notar que o objetivo era afastar a população negra dos centros urbanos. Os termos amplos e vagos da lei permitiam que a polícia agisse de forma arbitrária, resultando em prisões injustas.
Impossibilidade de se divertir
De acordo com o Jornal do Commercio (RJ), de 12 de janeiro de 1890, o Sr. Dr. chefe de polícia expediu aos subdelegados as seguintes circulares:
"Recomendo que, ao encontrarem qualquer indivíduo em estado de embriaguez manifesta em lugar público, lavrem o competente auto de flagrante por transgressão do art. 396 do Código Penal. Em seguida, apresentem o indivíduo ao respectivo pretor, acompanhado do auto e de duas testemunhas, para que o competente processo seja instaurado."
"Além disso, em vista do aviso do Ministério da Justiça de 6 do corrente mês, e com o objetivo de reprimir a crescente vadiagem nesta cidade, reitero a recomendação feita na minha circular nº 12236, de 30 de dezembro último, para que seja lavrado o auto competente contra vadios, vagabundos e capoeiras que forem levados à vossa presença. Após isso, conduzam os acusados, bem como as testemunhas, quando houver, à junta correcional, se esta estiver reunida, ou ao pretor, nos termos dos arts. 399 e 401 do Código Penal."
Criminalização do Espiritismo e das Práticas Mágico-Religiosas no Código Penal de 1890
O Artigo 157 do Código Penal de 1890, aprovado logo após a Proclamação da República pelo Decreto nº 847, criminalizou práticas associadas ao espiritismo, magia, talismãs e cartomancia, prevendo penas de prisão e multa para quem realizasse tais atos com o objetivo de despertar sentimentos, prometer curas ou influenciar a credulidade pública. A pena era de um a seis meses de prisão celular e multa de 100$000 a 500$000 réis.
O artigo ainda previa agravantes: Se a prática resultasse em alterações das faculdades psíquicas do paciente (mesmo temporariamente), a pena poderia ser elevada para até seis anos de prisão. Médicos que assumissem ou praticassem essas ações também poderiam ser penalizados com perda temporária do direito de exercer a profissão.
Apesar da linguagem genérica, esse dispositivo teve impacto direto na repressão de práticas religiosas afro-brasileiras, como o candomblé, a umbanda e outras expressões de religiosidade de matriz africana. Na prática, foi utilizado para perseguir líderes religiosos, prender praticantes e interditar terreiros, sob o argumento de proteger a "ordem pública" e combater a superstição.
Essa criminalização se insere em um contexto mais amplo de embranquecimento cultural e repressão à religiosidade negra e popular, no qual o Estado republicano buscava consolidar uma identidade nacional inspirada em valores europeus e científicos, marginalizando tradições afro-indígenas. O Art. 157 permaneceu em vigor até a promulgação de um novo Código Penal em 1940, mas os efeitos sociais da perseguição religiosa se estendem até os dias atuais.
FONTE:
Jornal do Commercio (RJ), 12 jan. 1890.
Resistências Radicais
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DEMÉTRIO ANTÔNIO, "PINTANDO O DIABO"

PRIMEIRA PÁGINA DO ARTIGO 'A CAPOEIRA', ESCRITO POR L. C., PUBLICADO NA REVISTA KOSMOS, EM 1906
Criminalizados através do termo legal de "vadios", os capoeiras não se entregavam fácil às forças policiais. Antes de serem presos – quando o eram – resistiam a todo o custo a serem enquadrados nas leis repressivas da República marginalizante, criminalizante, excludente e violenta. Nesse sentido, o caso de Demétrio Antônio dá uma medida da resistência encampada pelos capoeiras nas ruas do país.
"Valente como as armas, o terrível Demétrio Antônio estava anteontem a 'pintar o diabo', no beco do Consulado.
O Demétrio é digno émulo dos Bijus e dos Carrapelas, de que restam notícias nos arquivos policiais.
Alguém que o viu a jogar capoeira apitou. Acudiu a polícia.
O Demétrio, porém, atirou um dos soldados de catrambias, empurrou os pés no outro e com uma cabeçada fez um terceiro ir parar dentro da venda da esquina.
Foi preciso usar dos chanfalhos para prendê-lo. O Demétrio levou pancada de criar bicho, mas já está recolhido ao xadrez.
As praças que o agarraram chamam-se Henrique de Pádua Braga e Manoel Júlio Ribeiro. Uma delas feriu-o no pescoço com o rifle que usavam na ocasião.
O Sr. Dr. Araujo Lima procedeu ao corpo de delito em Demétrio e o subdelegado do 2º distrito de Santa Rita abriu inquérito a respeito."
[TEXTO REESCRITO E ADAPTADO PELO EDITOR REVISOR]
FONTE:
O Paiz, Rio de Janeiro, p. 1, 1º de junho de 1891.
L. C. A Capoeira. Revista Kosmos, Rio de Janeiro, mar. 1906.
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